olá, pessoas que ainda frequentam este blog que parece (só parece) abandonado. ultimamente, tem sido poucas as minhas reflexões por aqui, é verdade. mas continuam mantendo a mesma essência de antes. só que com menos tempo para serem exploradas. e por isso, peço desculpas.
hoje volto para encerrar a saga dos mal amados de joão cabral de melo neto, como prometido. aconselho que, caso você não tenha lido os post anteriores a respeito desta obra, faça-o antes de continuar a ler este : "então tá, vamos falar de amor... e poesia." e "o segundo dos mal amados".
joão cabral de melo neto
também lembro que disse que voltaria não só com o primeiro dos mal amados, mas também com os três mal amados na versão de carlos drummond de andrade. bom, na verdade, drummond que foi a grande inspiração de joão cabral de melo neto a escrever essa poesia de anti-amor.
o poema "quadrilha" faz parte do primeiro volume lírico de drummond entitulado "alguma poesia", de 1930. mil novecentos e trinta! de composição breve, este tipo de "poema piada", como era chamado pelos modernistas, de apenas uma única estrofe "é uma radiografia da hipocrisia mundana"...
quadrilha
joão amava teresa que amava raimundo
que amava maria que amava joaquim que amava lili
que não amava ninguém.
que amava maria que amava joaquim que amava lili
que não amava ninguém.
joão foi para os estados unidos, teresa para o convento,
raimundo morreu de desastre, maria ficou para tia,
joaquim suicidou-se e lili casou com j. pinto fernandes
que não tinha entrado na história.
joaquim suicidou-se e lili casou com j. pinto fernandes
que não tinha entrado na história.
esse poema inspirou não só joão cabral de melo neto, mas também o compositor osvaldo lacerda que o musicou. e enquanto eu estava escrevendo este post, lembrei que chico buarque dá uma pincelada nesta quadrilha em uma de suas músicas... mas essa vai ter que ficar pra depois! (pelo visto não esgoto esse assunto hoje...!)
sem mais enrolações, com vocês, palavras de joão:
olho teresa, vejo-a sentada aqui a meu lado. a poucos centímetros de mim. a poucos centímetros, muitos quilômetros. por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo nesse momento?
olho teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. vejo-a como se cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos e léguas.
posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma teresa que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada a mim?
esta é a mesma teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? posso dizer que a vi, falhei-le, posso dizer que a tive em toda intimidade? que intimidade existe maior que a do sonho? a desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?
ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. ainda sinto a onda chegando à minha cama. ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. e sem nenhum sinal dessa água que o sol secou, mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves, não apenas porque crescem e vivem no ar).
teresa aqui está, ao alcance de minha mãe, de minha conversa. por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? ignorante dos gestos, das palavras?
o sonho volta, me envolve novamente. a onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. penso que, no meio de toda essa gente de terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, sou o único a escutar esse mar. talvez teresa...
talvez teresa... sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?
posso esperar que esse oceano nos seja comum? um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de uma geografia, sua história, sua poesia?
o arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? é possível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa teresa, por exemplo, agora distraída e distante? há algum sinal que faça compreender termos diso, juntos, peixes de um mesmo mar?
donde me veio a ideia de que teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança, desse mundo que através de minha fraqueza eu me compreendi ser o único onde será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome, nada, nem mesmo teresa.
bom, vou deixar os devaneios sobre esse texto pra vocês, meu caros leitores. mas farei as devidas reflexões no próximo post. só não o faço neste, porque já me estendi demais e porque quero dividir com vocês o prazer de elevar o pensamento até onde alcança uma poesia por si só. e que assim seja.
até breve.